O padre que assumiu a tutela de 26 crianças com pais sob risco de deportação nos EUA
06/12/2025
(Foto: Reprodução) Padre Vidal Rivas com o diácono Francisco na Igreja de São Mateus em Hyattsville, Maryland, Estados Unidos.
BBC/ Igreja Episcopal de São Mateus
Da noite para o dia, o padre Vidal Rivas poderá ficar encarregado de cuidar de um bebê de 12 meses ou de um adolescente de 17 anos, que precisaria acolher em sua casa, alimentar, vestir e criar até que ele termine o ensino médio.
Ele também poderá precisar se encarregar dos trâmites para que diversas crianças possam viajar para o país de origem dos seus pais e acompanhá-los até seu reencontro.
O carismático sacerdote, que comanda a Igreja Episcopal de São Mateus em Hyattsville, no Estado americano de Maryland, se comprometeu a assumir a tutela temporária de 26 menores, caso seus pais sejam deportados.
"É uma responsabilidade muito grande, que mudaria completamente a vida da minha família", reconhece ele à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. "Minha esposa e eu temos consciência disso, sabemos o que isso significa."
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O presidente americano Donald Trump iniciou seu segundo mandato em janeiro, com a promessa de realizar "a maior deportação da história do país". E, desde então, muitos imigrantes sem documentos trataram de deixar tudo resolvido, caso sejam detidos e expulsos dos Estados Unidos.
Eles procuraram, no seu entorno mais próximo, pessoas de confiança, como o padre Rivas, para que cuidem dos seus filhos durante a sua ausência.
Cada vez mais, famílias sem documentos ou com situação migratória mista estão buscando tutores temporários para seus filhos.
BBC/Getty Images
Esta medida faz parte do que organizações e especialistas judiciais chamam de "plano de preparação familiar", algo cada vez mais praticado por famílias com situações migratórias mistas, em que pelo menos um dos seus membros não tem documentos.
"Isso implica manter conversas incômodas e tomar decisões dolorosas", explica Kristina Lovato, diretora do Centro de Imigração e Bem-Estar Infantil (CICW, na sigla em inglês) da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos. "Mas ser precavido facilita tudo na hora de lidar com uma emergência e suas consequências."
'Minha filha não ficará no limbo'
Existem atualmente mais de seis milhões de famílias em condições migratórias mistas nos Estados Unidos. Este número representa cerca de 5% do total, segundo números da organização Pew Research Center.
Segundo os dados do CICW, pelo menos um dos progenitores de 5,9 milhões de crianças não tem documentos.
A este número, é preciso somar mais de 500 mil crianças que têm pais amparados pelo Status de Proteção Temporal (TPS, na sigla em inglês), que o atual governo tenta revogar para cidadãos de diversos países, e pela Ação Diferida para os Chegados na Infância (Daca, na sigla em inglês).
Especialistas defendem que este programa, criado durante o governo do ex-presidente americano Barack Obama (2009-2017), atualmente está "se enfraquecendo".
Desde o início do ano até o mês de setembro, mais de 400 mil pessoas foram deportadas dos Estados Unidos, segundo os últimos números publicados pelo Departamento de Segurança Nacional do país (DHS, na sigla em inglês).
E os dados oficiais mais recentes indicam que, em 16 de novembro, o Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE, na sigla em inglês) mantinha 65.135 pessoas em centros de detenção espalhados pelo país. Este é o maior número registrado pela agência desde a sua criação, em 2003.
Dentre as pessoas detidas, 48% não tinham acusação, nem condenação penal nos Estados Unidos. Elas permaneciam em custódia por violações civis das leis americanas de imigração.
Padre Vidal Rivas (à direita), pároco da Igreja de São Mateus, em Hyattsville, Maryland.
BBC/Igreja de São Mateus
Esta situação vem preocupando os fiéis da Igreja Episcopal de São Mateus, segundo seu pároco.
O município de Hyattsville, ao qual pertence a igreja, é um subúrbio da capital americana, Washington.
Mais de 40% dos seus quase 21 mil moradores são latinos e um terço deles nasceu em outro país. Por isso, a cidade não está livre das detenções.
"As pessoas têm muito medo, mas dizer isso é pouco", destaca o padre Rivas. "Na verdade, é terror de sair e até de ficar no templo."
Vidal Rivas é oriundo de El Salvador e chegou aos Estados Unidos em 1998.
"Eu mesmo sou imigrante e, embora tenha vindo com residência pelos sacerdotes que me trouxeram para trabalhar neste país, acompanhei a dor do meu povo [durante a guerra civil salvadorenha, 1980-1992] e agora vejo isso aqui. Olho as pessoas em sofrimento todos os dias."
Por isso, o padre e membros da sua paróquia decidiram tomar ações para que os fiéis e a comunidade em geral possam se sentir mais seguros.
Os serviços religiosos, agora, são realizados a portas fechadas. Diversos voluntários vigiam a entrada e as vizinhanças.
Eles também começaram a incentivar os devotos a se prepararem para qualquer eventualidade relativa à migração, procurando guardiões temporários para seus filhos, como permite a legislação estadual.
"Com isso, descobrimos que muitas famílias não têm membros com residência permanente [green card] ou cidadania americana", lamenta Rivas. "É muito triste ver que eles não encontram ninguém e entram em grande desespero."
"Foi aí que precisamos ensiná-los a procurar pessoas de confiança que possam servir de tutores."
Imigrante equatoriana que decidiu se autodeportar
BBC/Getty Images
Mimi (nome fictício) é uma mulher sem documentos de 40 anos e mãe solteira de uma adolescente de 16. E, como tantas outras pessoas, ela encontrou essa figura no próprio padre Rivas.
"Passei muitos dias e noites pensando nisso", contou ela à BBC News Mundo. "E, embora seja uma decisão muito difícil, sei que é a melhor."
Ela afirma que se sente aliviada por saber que, se for deportada, sua filha não ficará "no limbo".
Mimi explica que a possibilidade de que "possa vir um assistente social e levá-la, que ela fique nas mãos do governo ou que a deem em adoção" seria seu maior pesadelo.
O nome verdadeiro e a nacionalidade de Mimi são omitidos para proteger sua identidade.
A mãe combinou com o padre Rivas que ele deverá se encarregar de todo o necessário para que a menor, diagnosticada no espectro autista, se encontre com ela no seu país de origem.
"Gostaria que minha filha continuasse estudando, que terminasse seus estudos, mas, com esta situação, nunca nos separamos e não acredito que ela queira ficar sem mim."
Esta é a missão recebida por Rivas de alguns dos pais de outros 25 menores, para quem foi nomeado tutor temporário. Outros pediram que seus filhos fiquem nos Estados Unidos, pelo menos até terminarem o ensino médio.
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Revogável por até seis meses
Para que isso seja possível e amparado pela lei, todos os fiéis preencheram e assinaram um formulário de designação parental para o início da tutela de reserva.
"É a ampliação de uma figura legal existente em Maryland desde a epidemia de Aids, nos anos 1970", explica à BBC a advogada especializada em direito de família Cam Crockett. Ela exerce a profissão no Estado há 40 anos e foi uma das promotoras da lei atual de tutela de emergência.
O Congresso estadual aprovou esta lei por unanimidade em maio de 2018. Além dos casos de incapacidade mental ou debilidade física, ela permite que os adultos designem um tutor reserva para seus filhos, para o caso de detenção pelas autoridades de migração ou deportação.
"Ela é ativada quando ocorre a emergência e dura seis meses, mas os pais podem revogá-la a qualquer momento", prossegue Crockett.
Os progenitores não perdem o pátrio poder, mas especificam no formulário o que o tutor pode fazer em seu nome, desde matricular os menores na escola ou interná-los em hospitais, até reservar voos e hotéis para eles, receber dinheiro ou tomar decisões financeiras.
"O que sugerimos é que se pense muito bem antes de escolher o potencial tutor, já que ele poderá precisar comparecer a um tribunal ou tomar um voo para outro país", explica a advogada.
Caso os pais desejem que a situação se estenda por mais de 180 dias, eles precisam buscar a tutela permanente ou avaliar uma custódia por terceiros. Para isso, a especialista recomenda consultar um advogado para examinar cada caso específico.
Mas a tutela de reserva não existe desta forma em todos os Estados americanos.
"Por isso, é muito importante que os interessados procurem bom assessoramento jurídico no Estado onde morem, pois as leis mudam de um Estado para outro", destaca a advogada Sharon Balmer Cartagena, diretora do Projeto de Defesa da Infância, Juventude e Família da organização Conselho Público.
"Existem muitos grupos, também online, em que as pessoas aconselham sobre este tema, mas um conselho muito bom para o Texas pode ser muito ruim na Califórnia", explica ela.
Na Califórnia, onde trabalha Balmer Cartagena, a tutela temporária não existe. Naquele Estado americano, a tutela outorga à pessoa designada a custódia legal e física completa da criança.
Para recuperar o pátrio poder, os pais da Califórnia precisam apresentar um pedido ao juiz, que irá decidir qual é a melhor opção para o menor.
"Pode ser uma boa alternativa se os pais concordarem que a pessoa designada praticamente se transforme em progenitora dos seus filhos", prossegue a especialista.
"Mas o que acontece se o tutor, digamos que um primo, decidir que já não é benéfico para o menor que ele mantenha contato com seus pais? Ele estará no seu direito se decidir desta forma."
Sessões informativas sobre como fazer um plano familiar caso um ou ambos os pais sejam deportados se multiplicaram pelos Estados Unidos
BBC/The Washington Post Via Getty Images
"A tutela se destina a crianças que ficarão com outra pessoa de forma permanente", explica Balmer Cartagena.
"Não a recomendamos para quem desejar que seus filhos se reúnam algum dia com eles no país de origem. Eles deveriam optar por uma declaração juramentada de autorização de cuidadores."
Por meio deste acordo mais simples, cada vez mais famílias sem documentos ou de status misto residentes na Califórnia deixam a cargo dos seus irmãos, primos, padrinhos ou amigos decisões escolares ou médicas que afetam seus filhos.
A advogada reconhece que, durante suas apresentações à comunidade, explicando como fazer um plano de preparação familiar, muitas pessoas afirmam não terem ninguém nos Estados Unidos que possa desempenhar esse papel.
"O que fazemos é incentivá-los a pensar de forma mais ampla, pois tivemos casos em que uma professora ou a família para quem a cliente trabalhava como cuidadora ofereceram seu breve apoio para facilitar a reunificação após a deportação", ela conta.
Mais consciência e preparação
Da mesma forma que o Conselho Público, outros grupos, voluntários e ativistas de praticamente todos os Estados americanos oferecem há meses oficinas sobre como preparar um plano de emergência familiar, além de sessões de divulgação com o título "Conheça seus Direitos".
Nelas, eles reiteram aos participantes que eles podem omitir informações pessoais e se negar a assinar qualquer documento. Eles distribuem folhetos e oferecem assistência jurídica por telefone.
E também divulgam o chamado "cartão vermelho", disponível em 19 idiomas, relembrando aos imigrantes seus direitos constitucionais e resumindo as medidas a serem tomadas ao interagir com os agentes do ICE.
Patrulhas comunitárias percorrem bairros e presenciam batidas, para garantir o cumprimento de todos os protocolos ou documentá-los em caso de violação de direitos. Os vídeos gravados por estes voluntários são publicados diariamente nas redes sociais.
Funcionários do governo Donald Trump atacaram essas ONGs e seus voluntários. Eles afirmam que suas ações "ajudam" os imigrantes sem residência legal a "desafiar" os agentes do ICE e "se esconder".
"Eles dizem 'Conheça seus Direitos', eu chamo de 'Como Escapar da Prisão'", declarou, certa vez, Thomas D. Homan, o "czar da fronteira" de Donald Trump, que chefia as operações de deportação.
De qualquer forma, todos estes esforços também destacam a consciência cada vez maior da necessidade de se antecipar, sobretudo mantendo pronto um plano que inclua os cuidados com as crianças.
"Existe uma campanha relativamente bem sucedida na comunidade imigrante e, quando falo com meus clientes, encontro perguntas mais estudadas e específicas, pois eles já conhecem as questões básicas", declarou em março à BBC News Mundo a advogada de imigração Kate Lincoln-Goldfinch, que trabalha na região central do Estado americano do Texas.
"Toda pessoa sem documentos precisa consultar sua situação com um advogado de imigração", destaca ela, e deve também ficar bem preparada para uma eventual emergência.
"Porque, quando há uma detenção, é como um incêndio: ninguém tem tempo de pensar e, depois, agir."
"Por isso, é fundamental reservar o tempo antecipadamente, por mais desagradável que seja, e pensar em quem irá recolher as crianças; se a escola tem as autorizações necessárias; se juntamos os documentos em uma pasta, incluindo as informações sobre contas bancárias; se sabemos onde estão as chaves do carro e o seguro... E ter tudo isso claro em um mesmo lugar, para que alguém que precise possa vir recolher e administrar nossas vidas por nós", explica Lincoln-Goldfinch.
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